Páginas

segunda-feira, 2 de junho de 2014

A porta de vidro

Através daquela porta de vidro fechada, Manuela enxergava seu maior sonho. Ela estava a uns dez metros da porta. O sonho, por sua vez, estava a uns quinze metros depois da porta. Toda vez que Manuela parava para observar, via seu sonho tão longe, mas tão longe, que a vontade que tinha era de desistir. Dia após dia, ela olhava. Não podia fugir daquilo, a porta de vidro estava sempre lá.
Numa manhã gelada de sol, em que acordou com um calor bom no coração e na alma, Manu saiu do seu lugar comum. Olhou para sua companheira, a porta, e percebeu que havia algo diferente nela. Percebeu então, que algo estava realmente estranho naquele dia. Talvez fosse aquele calor no coração. Ou talvez fosse o sol. Não se sabe o que a levou a isso, mas ela caminhou lentamente os dez metros até a porta. Parou ali, e olhou para fora. Seu sonho parecia tão mais perto, iluminado. Pousando a mão levemente na maçaneta, Manu ousou abrir a porta um pouquinho.


Viu o céu azul por entre a fresta, e ele parecia muito mais azul. Seu sonho ainda estava longe, mas agora ela podia vê-lo nu e cru, sem aquela bendita porta de vidro, que às vezes embaçava, molhava, e deixava turva a visão de seu maior objetivo.
Manuela amava metáforas, e gostava mais ainda quando ela conseguia chegar a elas. E naquele momento, concluiu: a fresta na porta de vidro era como a esperança. A fresta fazia com que visse seus objetivos mais claramente, assim como a esperança. A esperança fazia com que seus objetivos parecessem mais perto, assim como a fresta.

Ela não sabia ainda, mas quando estivesse prestes a dar mais um passo rumo ao maior sonho de sua vida, a porta não estaria escancarada. Era por aquela fresta que deveria passar.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Madame Reticências


"Quanta mudança alcança o nosso ser, posso ser assim, daqui a pouco não..."

- Eu sou uma reticências... - disse Joana ao seu melhor amigo, Juca, que tinha forma de ponto de interrogação.
- Como assim, Joana? - perguntou Juca.
- É, amigo. Isso mesmo que você ouviu...
- E por que você é?
- Não nasci assim, você sabe, me conheces desde sempre. Quando eu era pequena, era como você, vivia questionando tudo, querendo saber tudo... Quando jovem, fui exclamação. Ora, que fase horrivel. Gritaria, eu me escabelando daqui e fazendo mais um monte de gente se escabelar comigo... Nossa, sabe que não sinto a menor saudade de ser exclamação... - Joana indicou com a cabeça sua colega Fátima, que pulava de lá pra cá, toda afoita porque vencera em um jogo de dados.
- Qual é o seu problema com a Fátima? - quis saber Juca.
- Não tenho problemas com ela... Na verdade, é que prefiro ser assim, reticências... Deixar algumas subentendidas, no ar, fazer um charme às vezes. Acho que ser reticências é deixar o outro curioso, instigado a saber mais... Gosto do mistério que envolve as reticências, não gosto muito das coisas escancaradas, óbvias, aquele não dizer dizendo... Ai de mim ser sempre interrogação. Tem dia que eu acordo meio assim. Não gosto desses dias, pois minha pobre cabeça trabalha atrás de respostas que as vezes são impossíveis, acho isso tão cansativo... Não sei como você aguenta, Juca... Não sei como te aguentam, aliás.
- Você está me chamando de chato??? - Juca se enfureceu.


- Veja bem, amigo, um dos problemas em ser reticências, é que você pode ser entendido errado. Como você é meu melhor amigo, eu te digo: não estou te chamando de chato!!! Só fiquei um pouco interrogação, e senti vontade de entender como consegue viver assim...
- Ah, sabe que eu até gosto?!!! - disse Juca esticando por um momento as curvas de sua eterna interrogação.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Dizem que me perdi

Esses dias eu estava andando por aí numa rua qualquer da minha vida, quando uma pessoa me parou e disse:
- Olá, posso ver o mapa da sua vida?
Nunca alguém aleatório tinha pedido meu mapa. Mesmo assim, abri minha mochila e enfiei a mão lá no fundo. Achei, entreguei à pessoa estranha que estava na minha frente. Ela sorriu, agradeceu e começou a observar o mapa. Uns sete minutos depois, a pessoa me fitou com um olhar de piedade.
- Moça, acho que você está perdida! - disse ela ao cabo de uns bons minutos.
Imagem: weheartit
- Estou?! - surpreendida, quase desfaleci com a notícia.
Como assim eu estava perdida? Uma coisa dessas não podia acontecer.
Fiquei nesse impasse por uns três minutos, enquanto minha cabeça matutava em qual momento eu tinha me perdido. Até que enxerguei algo que transformou angústia em alívio. Então, eu disse ao estranho, com um sorriso bonito no rosto:
- Ô, olha só! - apontei para o mapa. - Você está olhando de ponta cabeça!

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Cabeça de ponta

Imagem: weheartit
Eva acordou às dez da noite e passou café numa meia que tirou da gaveta da cozinha. Mais um dia começara, e a impressão que ela tinha era que tudo ocupava o lugar errado á sua volta. Ela se incluía nessa história.
Lavou a louça na pia do banheiro, depois tomou banho com Ypê em barra. D

Doutora em Engenharia da Luz que Acende o Luar, Eva pegou sua maleta que estava na cama do cachorro e saiu para trabalhar. Chegou ao supermercado, tirou o estetoscópio da maleta e a partir daí, não parou um minuto se quer. Ou melhor, parou cinco minutos e quinze segundos, que utilizou para fazer xixi atrás da árvore de milho que ficava nos fundos do mercado.
Depois de muitas horas de serviço, Eva foi pra casa conversando com o motorista do metrô.
Comprou pão de queijo pro jantar, e fez ovos mexidos quando chegou em casa. Jantou silenciosamente, tomou outro banho e deitou-se debaixo da mesa da cozinha para mais uma noite de sono.                                               
Mais um dia acabara, e a impressão que ela tinha era que tudo ocupava o lugar errado à sua volta. Ela se incluía nessa história.
Dormiu e sonhou que estava comendo pão de queijo enquanto via o sol nascer...

sábado, 1 de junho de 2013

O diário falador

Era uma vez uma menina que escrevia todo santo dia num diário que ganhara de presente de aniversario de 15 anos. Lá, ela falava sobre o seu dia, sobre o que pensara e fizera. Num dado momento de sua vida, a menina desejou que seu diário pudesse responder suas indagações, com alguma palavra amiga, um conselho, uma ajuda.
Quatro anos depois, a menina continuava a escrever no mesmo diário. Mas suas folhas estavam acabando. Então, andando num sebo da cidade, ela encontrou um caderno, que a princípio, pensou que fosse um livro. Sua capa era dura e enfeitada com galhos retorcidos em dourado. Quando o abriu e percebeu suas folhas pautadas e em branco,  decidiu levar e usá-lo como seu novo diário. 
Naquela mesma noite, antes de dormir, ela escreveu a mesma ladainha de sempre. Reclamou um pouco da vida, contou sobre seu dia,    e pediu para ser respondida. Num surto de desespero, ela pediu para que o diário rezasse por ela e pelo dia importante que estava por vir. Fechou o caderno, guardou-o na gaveta do bidê, e adormeceu.
No dia seguinte, então, algo incrível aconteceu. Quando abriu o diário novamente, com a caneta pronta para começar a escrever, notou que embaixo do local aonde ela se despedira dizendo “boa noite, diário”, estava escrito com uma caligrafia torta e estranha, que ela jamais vira antes: “eu rezei por você, menina”.
E esse foi o começo da amizade improvável e inimaginável, de uma menina com um diário. Mas o mais esquisito, é que, pasmem! O caderno também contava suas aventuras à menina, e é claro que era respondido.

Engraçado como nasce a amizade entre seres tão diferentes, mas que se descobrem tão iguais...

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Dependência


Alguns sofrem dependência de cigarro. Outros do álcool. E ainda existem mil tipos de drogas ilícitas.
E a moça que outrora declarou independência quase total, percebeu que tinha um vício, e que se não se cuidasse... Bom, talvez tivesse que passar um tempo numa clínica de recuperação.
Enfim, aquela moça não era alcoólatra, não. Mas seus instantes de alegria duravam tão pouco quanto o de um. Duravam enquanto não estava sozinha e só. Entre as quatro paredes do seu quarto silencioso, era difícil se sentir alegre. É por isso que a moça era viciada em outras pessoas. Um vício perigoso, pois se depender dos outros pra isso ou aquilo já é ruim, imagine pra ser feliz.
A moça sabia. Ela entendia perfeitamente que a real felicidade vem de dentro para fora. Mas suas crises de abstinência eram realmente terríveis. Quem sabe um dia a moça se tocasse que estava fazendo uma bela cagada e resolvesse se cuidar. Ir tapando os buracos que a vida lhe deixara, não com outras pessoas, mas com si mesma. Quem sabe um dia ela consiga... Quem sabe.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

O gosto do amor


Qual é o gosto do amor? Azedo como uma uva verde? Talvez como um caqui marrento? Ou salgado como a comida de alguém que errou a mão na hora de cozinhar? 
A verdade é que a escolha do gosto do amor está no paladar de quem ama. Cada qual pode decidir se quer beber o amor como um café preto, forte e quente, ou se quer bebê-lo como um milkshake do Bobs. 
Se todos soubessem que conseguem dominar o amor, no sentido que ele seja algo bom, já que existe, não haveria tantos seres humanos infelizes. O segredo do amor é o próprio amor. Digamos que é preciso bem mais do que amar alguém. É preciso amar o amor que se sente. É preciso acreditar que o sentimento tem um grande valor, mesmo que ele pareça inútil. É preciso ainda, que se ame e apenas ame, sem esperar muita coisa em troca. 
Alguns dizem que amar é sofrer. Não é, se você escolher que assim o seja. 
Qual é o gosto do amor, portanto? É doce, sem dúvida. Falemos de um doce discreto, quase inexistente e que alguns não conseguem perceber. Mas está lá. O gosto doce do amor, do amar, mesmo que quase imperceptível, está lá. Ele existe, basta querer sentir.

Layout: Bia Rodrigues | Tecnologia do Blogger | All Rights Reserved ©